quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Aqueles Olhos



Ela arrastava as sandálias desleixadamente. Era como se a cada passo, ela arrastasse a própria rotina miserável. Levantou-se para fechar as janelas, a previsão era de chuva. Voltou para o sofá fechando o casaquinho de lã cinza.

  Sim, sua rotina era mesmo miserável e ela sabia disso. Talvez por isso, como uma espécie de protesto ou vingança, negava ao mundo a beleza que Deus lhe deu. Seu andar arrastado lhe dava vinte anos a mais. As bijuterias lhe penduram apenas por ofício. Cabelos e roupas sempre das mais simples, só porque nunca pensou em ser naturalista ou neo-nazista. Na verdade, ela nunca pensou em ser nada.

  Trabalhava todos os dias como vendedora em uma loja emergente, mas recebera o eufemismo de “promotora”. Incumbida de assim fazer, era ela quem abria e fechava a loja. Era todo dia, do trabalho para a casa. E ao pôr para fora os pés nas sandálias gastas, afim de fechar as portas, ela olhava de um lado para o outro esperando algo acontecer. Ela não sabia pelo o que esperava, mas precisava que algo acontecesse. Podia ser um príncipe num cavalo branco, ou apenas um príncipe, ou ainda que fosse só um cavalo. Mas nada acontecia, não havia nem príncipes, nem sapos, nem cavalos.

 Em certa noite, ventania fria e cortante, nossa personagem executava mais uma vez aquilo que o Destino que reservara, descia as pesadas portas de ferro do estabelecimento. E como todo o dia, olhava para os lados, naquela esperança disfarçada de curiosidade. Mas nessa noite, algo havia de diferente. Ela olhou em volta, e estava tudo normal, a rua meio vazia como de costume, mas alguma coisa estava diferente... alguma coisa... Ela olhou  para os lados, examinava a rua com ares de topógrafo. Nada. Mas um incômodo a perturbava. Sabia que, embora as poucas pessoas na rua nem sabiam de sua existência, sentia-se observada. Por fim, ignorou e foi para casa, o único lugar onde alguém sempre esperava por ela, o galã da novela, sempre no mesmo horário.

 No dia seguinte, ao repetir a rotina da porta de ferro, era observada. Não entendia como e nem por quem. O galã estava na Tv, os transeuntes não a viam. Mas era sim observada, diria mais, admirada. Nos primeiros momentos, andava as pressas, encolhida, como se ficasse invisível. Precisava desviar-se dessa inoportuna observação.

Mas com os dias passando, a observação lhe tornou intima. Havia alguém que a via, que a enxergava. Alguém que saberia distinguir seus sorrisos e olhares, suas verdades e vazios. Um amigo secreto. Um estudioso de seus passos. Finalmente podia sentir-se parte do mundo. Ainda não conhecia seu observador. Nunca o viu. Ninguém mais via. Mas não duvidava da sua veracidade. De certo, sentia-se as vezes confusa, não tinha certeza se era capaz de distinguir realidade e delírio. Só podia ser delírio. Via-se absorta numa busca inútil de explicações plausíveis para o que acontecia. Não encontrando, desistiu das razões, elas não entendem nada de afeto e desconhecem a solidão.

E num dia, já bastante confiante desta relação metafísica, fez expressão convidativa para que fosse acompanhada por aquela presença. Ela seguia animada pela companhia, mesmo sem ver, mesmo sem falar. Chegou em casa, sentou-se no sofá e juntos assistiam a TV, onde ela finalmente não estava mais só.