Clara tinha trinta anos. Trabalhava como
acompanhante de uma idosa enferma.
Possuía uma casa da qual não tinha o direito de
se lembrar que a tinha, caso quisesse
ganhar o pão de cada dia. Passava todas as noites e os dias na casa da senhora
enferma. Em seus domingos de folga abria a porta da sua sala e aspirava aquele
cheiro de mofo que a casa fechada exalava.
E assim vivia Clara. Mas tinha que se sentir
feliz, tinha que agradecer pela vida que tinha. Afinal, seu emprego pagava suas
contas, e a velha não era das piores, tinha uma casa simples, mas própria, o
que mais poderia desejar? Esperamos que nada. E de fato Clara nada mais
desejava. Ela carregava consigo uma conformação nata dos que não podem muito.
Aliás, Clara podia comprar o celular da moda. Clara
podia comprar aquele par de sandálias da promoção. Clara também podia ouvir sua banda favorita enquanto se deliciava
com a receita nova, mandando a sua dieta ás favas, coisa que Clara também
podia. Ah, e Clara também podia ter alguns amigos e amigas, os quais ela podia
de vez em quando revê-los.
E assim vivia Clara. Mas estava tudo errado.
“Como assim tudo errado?”.”Assim tudo errado”- Clara monologando com sua
consciência.
Ela não sabia exatamente o porquê, mas sempre
ouvia que sua vida estava errada, que o mundo estava errado... Cada um tinha
sempre uma boa razão e uma ótima solução para a sua vida. A casa deveria ser
amarela para alegrá-la, suas roupas deveriam ser mais ousadas, ou menos
ousadas. Porque não fazia isso? Ou porque não tinha feito aquilo?
E Clara, que levava a vida sem nada mais
desejar, entendeu de que de fato estava tudo errado. E foi durante um almoço
insosso que uma lâmpada fluorescente lhe acendeu a mente, o espírito e claro,
sua consciência, que era seu animalzinho de estimação. E como estava tudo
errado, Clara pôs-se a consertar as coisas imediatamente. Trocou o garfo e faca
pela colher e faca.
E quando se levantou, andou de costas. Guardou a
louça no guarda-roupa. Calçou o par esquerdo do chinelo no pé direito. O
relógio e a televisão foram postos de cabeça para baixo. Leu a revista de trás
para frente. Vestiu-se do avesso.
“Pronto, agora deve estar tudo certo” – Clara
aliviando a consciência.