terça-feira, 9 de agosto de 2016

O Drácula de High School

As manhãs ensolaradas e com cantos de passaros eram alegres naquela cidade. Menos para Aníbal. D. Teresa sua esposa, cantarolava ao sair de casa e sorria ao chegar no trabalho. Mas não Aníbal. 

Anibal não gostava de pássaros e nem de crianças. Embora nao seja uma obrigação social gostar deles,  atrapalhava um pouco seu trabalho tendo em vista que era professor a cinquenta anos. Mas não dava aula para pássaros, e sim para crianças, o que lhe obrigava a pelo menos aturar estas. Entretanto Aníbal não acreditava nas diferenças entre crianças e passaros, afirmando que ambos eram enlouquecedouramente barulhentos e igualmente inconsequentes. Mas pássaros ficam em gaiolas. Crianças na escola, para infelicidade de Aníbal. 

Depois de levantar da cama afirmando todos os dias que, devia ser proibido iniciar uma jornada de trabalho antes das dez horas da manhã, ele também seguia religiosamente outro ritual, ensaiava uma luta de esgrima no banheiro empunhando sua escova de dentes, nu, contra o espelho. Só após vencer a luta, saia de casa, obviamente vestido. Esgrima sempre era para ele o duelo mais honesto, afirmava que bastava uma partida para conhecer o seu verdadeiro caráter. Nunca teve a oportunidade de aprender o esporte, mas gesticulava o que conhecia.  

No trabalho, enquanto passava pelos corredores da escola, todas as crianças, impreterivelmente corriam, as mais corajosas permaneciam em seu lugar tentando ficar invisível. Para seu azar, sempre sem sucesso, permitindo-se que Aníbal, o Canibal, lhe espraguejasse alguma coisa. Corria a lenda urbana de que no início de carreira, Anibal para provar uma pesquisa científica pessoal, comeu viva uma criança. Os mais céticos  só diziam que ele tinha quebrado o  braço. Comprovado mesmo estava a evasão escolar de 6 crianças, entre elas a Rosinha, que dizia que seria advogada. Como nunca compreendera o dois mais dois,atualmente trabalha na repartição de controle de população de esquilos no Amazonas. 
Aníbal na sala de aula era quase tão ruim quanto fora, só que pior. Encarava os alunos buscando neles alguma fraqueza para que nela agisse. Parecia nisso extrair uma energia vital. E tinha olhar clínico para identificar personalidade, histórico familiar e caso houvesse, antecedente criminal. Era o melhor no sarcasmo. Mestre na humilhação, como dizia ele, pedagógica. Sobre isso, Aníbal escreveu um artigo que pretendia provar que a humilhação escolar era essencial para o amadurecimento do indivíduo.  Nunca foi publicado. 

D. Teresa o advertia constantemente para aposentar-se. Tanto desprazer no trabalho só se solucionaria com afastamento. Ela tentava persuadi-lo com as preguiçosas viagens que ele poderia fazer para Raposo. Ou como ele teria mais tempo para o seu hobby de colecionador de latinhas. Nada o convencia, negava com a veemência de quem sabia o que o esperava na vida pós aposentadoria, e dizia ele que era a morte. 

Não teve jeito, D. Teresa articulou tudo, providenciou a papelada e Aníbal aposentou. A contragosto, obviamente. Mas todos já estavam acostumados com os contragostos permanentes de Aníbal. E todos não ouviam quando ele dizia que precisava das crianças e da Juventude que delas emanava. E ninguém ouvia quando ele dizia que isso o fazia sentir-se vivo. Hipérboles de Aníbal, logo inventaria outras histórias. 

Em 30 dias de aposentado, viajou para Itatiaia. Em 40 dias completou sua coleção.E se recusava a ir para Raposo. Em 55 dias caiu de tédio. Em 60 dias, adoeceu, não se sabia de quê. Em 70 dias de aposentado, D. Teresa saiu para comprar flores, e ao voltar encontrou um bilhete. Aos 70 dias e 14 horas de aposentado, Aníbal faleceu. E o bilhete dizia "preciso das crianças". 

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Seu Justino que era bom

Era cidade pequena. Interior do estado. Tinha clima bucólico e sempre muito familiar. Quase nada acontecia de extraordinário. Mas possuía dois fenômenos. Não eram exclusivos, como quase nada nessa cidade. Aliás, o que lá acontece, se vê por toda a parte. 
E os fenômenos, sim. O primeiro é de fundo metereológico. Todos da cidade tinham conhecimento de causa. Mesmo que não fosse de senso comum, era ao menos para ter o que dizer. Sempre que se encontravam era comentada a direção do vento, o calor, se choveria ou não. 
O segundo fenômeno não era de fundo metereológico, mas os cientistas ainda estudam, apesar do esmero, sem avanços para identificar as causas. Eles chamam de “santificação memorial coletiva”. Não que seja de fundo religioso, mas bem que podia ser. Para esse fenômeno nós temos o seu Justino. Falecera a pouco mais de um ano. Padecera de doença pouco antes de expirar, comovendo todas as gentes. Inclusive ia ganhar praça com seu nome, mais porque tinha irmão vereador do que por honra. Mas ia virar praça.
E em todos os encontros casuais, rodas de praça, boteco e fila de médico, os dois fenômenos aconteciam. O tempo era o primeiro assunto. Seu Justino o segundo. E a conversa a seguir, ocorreu na porta do aviário, por três ou quatro conhecidos. 
-Seu Justino que era bom homem, coitado!
-Morreu moço, deixou dois filhos homens. Já estudados, mas que lástima!
-Alguém tem noticia daquela família que ele expulsou do terreninho?
-Não.
- Família pobre. Cinco crianças. Parece que não tinham para onde ir. Mas quem mandou invadir terreno dos outros?
-O terreno era o menor bem do seu Justino, tava abandonado há dez anos. Mas não se toma o que não é seu. 
-Não mesmo!
-Seu Justino que era bom! Lembram da doação que fez para obra da igreja?Não teve doação melhor. 
-Dizem que ele queria lavar o dinheiro, que tava sujo
-Mas a igreja ficou linda. E teve festa de inauguração. Que festa!
-Soube que ele ameaçou o padre. Queria todas as prostitutas trabalhando na festa. 
-Mas que festa! E ele era muito generoso!
-Não foi nessa festa que ele mandou matar o Gonçalo?
-Foi nessa não. 
- O homem denunciou o seu Justino, acusou de adulterar o combustível que vendia no posto.
-Ninguém pode denunciar sem prova. Coitado do seu Justino, caluniado.
-Até a esposa abandonou ele. 
-Dizem que ele não parava uma noite em casa. Pessoa alegre, tava sempre em festa. 
-Mas esposa tem que ser pra sempre. E ele nunca mais casou. 
- Era muito ocupado com o trabalho. Tinha que sustentar a família. Mantinha os filhos estudando no exterior. Muito trabalhador ele! E humilde.
-Mas dizem que das prostitutas ele não lucrava, só cuidava por caridade. 
-Seu Justino que era bom...

(Escrito em fevereiro de 2016 mas eu queria guardar para o livro)