quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

O caso da alface



Essa é uma historia como outra qualquer. E não sei ao certo a moral da história. Parte porque não sei se toda história deva ter uma moral, e parte porque eu não saberia mesmo dizer qual a moral dessa.   
Nessa história qualquer, temos a D. Dora, uma mulher como outra qualquer. Dona de casa exemplar, esposa conformada, mãe e ponto final. Talvez ela quisesse ser aeromoça quando jovem, ou secretária bilíngüe, ou moça independente. Mas não sei dizer, porque nunca lhe perguntei. De qualquer modo, hoje ela é a D. Dora.  
E tudo começa quando D. Dora vai ao mercado do bairro escolher verduras para sua família. Uma atividade monótona, digna de um piloto automático, mas que para ela, havia a importância de alimentar sua família. E como planejara uma perfeita salada de alface, percebe que não havia alface. “A alface acabou”, foi o que disseram. D. Dora talhou um sorriso no rosto se perguntando como que a alface acaba ás 15:36. E teve que mudar os planos da sua salada perfeita, para uma imperfeita.  
Na semana seguinte, D. Dora, já havia eliminado totalmente o efeito da ausência da alface em sua vida. Voltara ao mercado planejando agora uma salada mais-que-perfeita, e claro, com alface. E novamente, não havia alface. “Não tem alface”. D. Dora não sorriu. Também não agradeceu a informação do atendente. D. Dora apenas divagou, mentalmente, por um mundo melhor, onde uma simples alface pudesse ser encontrada.  
D. Dora sentiu o vazio da alface em sua vida. Não havia alface. E começou a pensar que era uma mulher humilde, não queria um filé mignon, nem a paz mundial, não falava mal das políticas inúteis de preservação do meio ambiente, pagava seus impostos, educou seus filhos, tudo o que desejava era uma alface. Como era muito católica, pensou em como o homem era o lodo do homem, negando alface ao seu próximo, logo a alface, uma planta, dádiva de Deus. E agora, ela não podia fazer a sua salada. Pensou no comunismo, e em como todos teriam direito a alfaces. “Vou para Cuba”. D. Dora agora sentia o vazio de sua vida, a casa, o marido, os filhos, a si mesma, como era difícil exigir tão pouco da vida para ganhar o quase nada (nem uma simples alface). “Hoje não temos salada”, anunciou D. Dora para sua família como quem declara uma guerra civil.  
No dia seguinte, D. Dora decidiu que isso não podia continuar. Ela tomaria rédeas de sua vida. Foi ao mercado. Avante ao setor de verduras. E não havia um pezinho sequer da alface encantada. Havia umas folhas soltas, as rejeitadas, as filhas do meio. Uma semana antes, D. Dora daria também ela as costas a elas. Mas hoje, hoje era dia de salada. D. Dora pegou as folhas soltas, uma a uma. Todas as folhinhas que boiavam na água barrenta, como criança em orfanato. “Não importa o pé, e sim as folhas”. Desceria alguns degraus da moral, cataria as sobras sim, mergulharia ao Hades das verduras para resgatar sua vida. E houve alface. E tudo voltou ao normal. 

1 / 1

O caso da alface  
Essa é uma historia como outra qualquer. E não sei ao certo a moral da historia. Parte porque não sei se toda história deva ter uma moral, e parte porque eu não saberia mesmo dizer qual a moral dessa.   
Nessa historia qualquer, temos a D. Dora, uma mulher como outra qualquer. Dona de casa exemplar, esposa conformada, mãe e ponto final. Talvez ela quisesse ser aeromoça quando jovem, ou secretária bilíngüe, ou moça independente. Mas não sei dizer, porque nunca lhe perguntei. De qualquer modo, hoje ela é a D. Dora.  
E tudo começa quando D. Dora vai ao mercado do bairro escolher verduras para sua família. Uma atividade monótona, digna de um piloto automático, mas que para ela, havia a importância de alimentar sua família. E como planejara uma perfeita salada de alface, percebe que não havia alface. “A alface acabou”, foi o que disseram. D. Dora talhou um sorriso no rosto se perguntando como que a alface acaba ás 15:36. E teve que mudar os planos da sua salada perfeita, para um imperfeita.  
Na semana seguinte, D. Dora, já havia eliminado totalmente o efeito da ausência da alface em sua vida. Voltara ao mercado planejando agora uma salada mais-que-perfeita, e claro, com alface. E novamente, não havia alface. “Não tem alface”. D. Dora não sorriu. Também não agradeceu a informação do atendente. D. Dora apenas divagou,mentalmente, por um mundo melhor, onde uma simples alface pudesse ser encontrada.  
D. Dora sentiu o vazio da alface em sua vida. Não havia alface. E começou a pensar que era uma mulher humilde, não queria um filé mignon, nem a paz mundial, falava mal das políticas inúteis de preservação do meio ambiente, pagava seus impostos, educou seusfilhos, tudo o que desejava era uma alface. Como era muito católica, pensou em como o homem era o lodo do homem, negando alface ao seu próximo, logo a alface, umaplanta, dádiva de Deus. E agora, ela não podia fazer a sua salada. Pensou no comunismo, e em como todos teriam direito a alfaces. “Vou para Cuba”. D. Dora agora sentia o vazio de sua vida, a casa, o marido, os filhos, a si mesma, como era difícilexigir tão pouco da vida para ganhar o quase nada. “Hoje não temos salada”, anunciou D. Dora para sua família como quem declara uma guerra civil.  
No dia seguinte, D. Dora decidiu que isso não podia continuar. Ela tomaria rédeas de sua vida. Foi ao mercado. Setor de  verduras. Não havia um pezinho sequer da alface encantada. Havia umas folhas soltas, as rejeitadas, as filhas do meio. Uma semana antes, D. Dora daria também ela as costas a elas. Mas hoje, hoje era dia de salada. D. Dora catou as folhas soltas, uma a uma. “Não importa o pé, e sim as folhas”. E houve alface. E tudo voltou ao normal.  

1 / 1

O caso da alface  
Essa é uma historia como outra qualquer. E não sei ao certo a moral da historia. Parte porque não sei se toda história deva ter uma moral, e parte porque eu não saberia mesmo dizer qual a moral dessa.   
Nessa historia qualquer, temos a D. Dora, uma mulher como outra qualquer. Dona de casa exemplar, esposa conformada, mãe e ponto final. Talvez ela quisesse ser aeromoça quando jovem, ou secretária bilíngüe, ou moça independen

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

A Hora do Chá

A hora do chá

Era uma tarde cinza, perfeita para um chá. Seria um bom momento para se sentarem frente a frente e murmurarem as mazelas da classe média e dos preços cada vez mais altos para se manter nela. Uma decoração doméstica simples mas que acompanhasse a moda, roupas novas a cada estação, o combustível para o carro de fabricação do ano anterior. Sem falar na política que nunca melhorava. E nos projetos sociais da igreja do bairro. O quanto era difícil sustentar a imagem dessa classe. Um fardo para poucos.

Então o casal harmoniosamente sorvia seus chás em xícaras luxuosas, dignas de uma herança familiar centenária. A mobília era modesta, mas o casal tinha gestos de realeza. Um sangue azul forjado, inquestionável para qualquer pessoa, menos para eles mesmos.
A porta é batida, quebrando a monotonia do diálogo pausado e sem fim. Quem bateria á porta deles? Quem poderia ser? Ninguém ia até lá a meses.

“Seria a família deles? Seria a policia? A família com a policia? E agora, o que faremos?”

Diriam que conheceram o casal Geisel em uma viagem. Diriam que uma crise conjugal os motivou a querer trocar de lugar, e cederam a eles toda a casa. Não. Diriam que nunca ouviram falar dessas pessoas. Não. Diriam que o casal perdeu a casa e todos os seus pertences numa aposta durante uma noitada de viagem. Não. Ninguém acreditaria neles numa noitada, eram tão caretas. E a porta ainda era batida, incessantemente, violentamente. Diriam que foram convidados a morar com o casal, mas que estes, se retiraram em uma viagem. E aquela porta batendo. Já não eram capazes de pensar em mais nada. Nenhum álibi. Nenhuma história perfeita. Diriam a verdade.

Como ninguém respondia a porta, mas insistia em batê-la, sabiam que estavam ali e não havia dúvidas, era a policia. E pela força com que batiam, já sabiam, já sabiam de tudo. E eles finalmente poderiam dizer a verdade. Réus confessos tinham melhores chances. Confessariam. Não por nenhuma consciência que lhes pesava. Confessariam porque não suportavam mais aquela porta batendo. Era de ensurdecer. Não conseguiam pensar. Logo, mal conseguiriam respirar. Mas não seriam capazes de contar tudo olhando nos olhos.

Se aproximaram da porta e começaram a falar. Conheceram o casal Geisel numa excursão. Passaram longas horas juntos. Uma grande empatia. Eles pareciam perfeitos, o romance, a vida material e social. Passaram a visitá-los com freqüência. E embora agradável, era igualmente incômodo ver que eles possuíam tudo o que  não tinham. Ainda assim, ficaram tão íntimos que já conheciam toda a rotina, todos os passos, e todos os espaços do casal. E num dia, cuidadosamente combinado, embriagaram o casal. Amarraram-nos. Surraram-nos. E tomaram seus lugares, na casa, na sociedade, na documentação, na classe média. O casal? Vivam no porão desde então. Até que não era um cárcere tão ruim.

Quando então tiveram a coragem de abrir a porta, com as mãos para o alto em sinal de paz. A policia? Era o carteiro, com uma encomenda a ser assinada.

Caos



O caos é um estado de espírito. O caos não é um acidente. O caos somos nós.

Esse caso aconteceu num lugar não muito distante daqui e não muito tempo atrás. Mas poderia ter acontecido em qualquer lugar, a todo tempo. Porque o que se passou, poderia ser com qualquer um. Poderia ser o padeiro que faz o nosso pão de cada dia, poderia ser a vizinha que você vê varrendo a calçada todas as manhãs, mas dessa vez foi com o arquiteto.

Ele entrou na delegacia, calmo, seguro. Tinha uma denuncia a fazer. Só podia ser com o próprio inspetor.

“Sinto desejo de gritar quando tudo está silencio. Sinto desejo de quebrar o que está inteiro. Quero desarrumar o que está em ordem. Quero provocar a discórdia. Quero causar um acidente. Destruir o que é bonito.

Para tudo o que olho, eu quero o caos. Em todos os lugares.

Certa vez eu estava dirigindo. Tudo harmonioso. Todos em direção. Isso me irritou profundamente. Desejei jogar meu carro contra outro. O que aconteceria? Eu teria morrido? Alguém sobreviveria? Qual seria o tamanho do estrago no meu carro? Imaginei aquela confusão de bombeiros, ambulância, jornal, polícia. Imaginei todos me perguntando o que teria acontecido. Um apagão mental no volante poderia ser fatal, ou um mini infarto. Todos me perguntando como eu me sentia. Queria saber como se passa por um acidente. O que é ser um sobrevivente.

Outro dia eu estava na sala de espera do dentista. Todos, de frente uns para os outros, mas ninguém se encarava. Ninguém quer olhar para um desconhecido. Um silencio total. Irritante. Quis gritar. Quis xingar aquele careca em seu ouvido. Dizer que somos todos patéticos. Que a vida é patética. Quis socar a cara de santa imaculada daquela velha que me olhava como se estivesse em um andar superior.  Imaginei os psiquiatras dizendo que sofro de uma síndrome, ou um transtorno momentâneo, um stress. Me recomendariam alguns calmantes e terapia.

No mercado, quando vejo todos aqueles produtos perfeitamente enfileirados, exibindo orgulhosos seus altos preços injustos para enriquecer um filhinho de papai, quis jogar tudo ao chão. Destruir cada palmito enlatado. Cada suco de caixinha. E acima de tudo, quis jogar longe, o mais longe possível aquela pizza congelada. Já estava imaginando os seguranças me agarrando, eu resistindo, sendo arrastado. Eu teria que explicar falsamente meus graves problemas financeiros e como isso tem afetado meu equilíbrio psico-social.

Quando vejo os gatinhos na rua...como reagiriam a um chute?

E quando sinto vontade de empurrar um desconhecido na frente de um carro.

Por isso estou aqui na delegacia, para pedir que me prendam. Não posso estar em sociedade.”


- Meu senhor, não podemos fazer nada, o senhor nada cometeu. Não há provas. Não é um criminoso.