quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Unilateral

Era uma cidade pacata e uma rua silenciosa, onde todos os vizinhos viviam em seus bunkers como se esperassem a invasão russa.

Assim morava Juli em sua casa-ilha em seu próprio tempo-espaço. É assim morar nas cidades. Era assim naquela cidade que não era sua.

Até o dia em que Juli ouviu ruídos e ritmos, ainda sem forma até se aproximar do muro para entender. E os sons vinham da casa ao lado, desabitada por 4 anos, habitada a uma semana. E os sons eram música. E aquilo era vizinho.

Juli reconheceu a música. Era uma velha canção de que já não ouvia a muito tempo, desde que havia se perdido de si mesma. Uma música que ouviu repetidas vezes, em tantas ocasiões de sua vida, mas que agora, era apenas a alegoria de um tempo que passou e de uma Juli que não existe mais, adolescente, patética, cheia de sonhos e sons. E esses mesmos sons, "Sweet child o mine", "Jeremy", "Enter Sandman", "Losing my religion" entre outras, eram agora passaportes para uma longa viagem.

Semana após semana, Juli aguardava as músicas do vizinho, talvez em seus momentos de folga. E acompanhava todas as músicas tocadas, ria, chorava, lembrava. Pelo muro, ia reportando-se a ela mesma, revisitava o passado e redescobria a si mesma. Cavava fundo em si, conforme os sons do passado vinham diretamente da casa ao lado.

 Ela imaginava que sentimentos também não haviam ali ao lado remexidos pelo som. Que memórias aquela pessoa também carregava. Não lhe importava saber se era "ele" ou "ela", engenheiro, arquiteta ou farmacêutico, nome ou rosto. Só sabia que era também um náufrago. Mas estabeleceu com aquela pessoa, uma relação unilateral de encontros marcados no muro, onde Juli encontrava-se com ela mesma.