Rio de Janeiro, 20 de
junho de 1896,20:50. – A chuva causa
estalidos agudos. Parecem metais caindo. Passos rápidos e secos. Luz amarela.
Iluminação precária nas ruas. A pressa causa surdez. Não ouvia nada a minha
volta. O melhor disfarce é misturar-se. Gestos naturais, sorrir e cumprimentar.
Queria ser invisível.
Cheguei em casa, minha
humilde casa, meu casebre, mofado e úmido. Abrigo de insetos, de vermes, meu abrigo.
Abrigo, obrigo, obrigado.
Apoio as chaves.
Procuro pela casa alguém que não existe. Faço por hábito. Ninguém. Só agora
estou em casa, após os rituais sistêmicos de chegada que me encadeiam. Acender
e pagar as luzes da casa, checar os cantos, averiguar se cada objeto está aonde
deixei ao sair. O ritual de entrada é apenas extensão do ritual de saída, o
qual inclui uma fotografia mental de todo o cenário.
Deito na cama,
estático. A lâmpada a menos de um metro e meio acima de mim. Poderia tocá-la.
Entrelaço as mãos sobre o peito. Fico esperando.
Pode acontecer a
qualquer momento, podem me encontrar.
_________________________________________________
Rio de Janeiro, 21 de junho de 1896. 21:10 –
Chego em casa. Apoio as chaves. Passei imperceptível pelas ruas. Ás vezes sou
invisível. Venci os olhares alheios, os murmúrios dos jovens fúteis, e
dominação territorial de homens empoleirados.
Faço o ritual de
entrada. Deito na cama ainda vestido e de sapatos. A lâmpada pendurada
balanceia.
Penso na noite de
ontem. O que foi que eu fiz?
___________________________________________________
Rio de Janeiro, 20 de
junho de 1896. 23:41 – A chuva causava estalidos agudos, pareciam metais,
tilintava. Ouvi passos rápidos e secos. A luz estava amarela em razão da
iluminação precária. Ainda ouvia os passos e formavam um conjunto harmonioso
com os meus. Olhei para trás e vi uma pessoa, sem formas claras por causa da
penumbra. Caminhei mais rápido e os passos me seguiam.
Não deveria ter entrado
naquela rua. Finji sentir-me segura e
ignorar a presença de quem me seguia. Apressei-me, mas foi em vão, ele me
acompanhava. Eu respirava ofegante, denunciando meu medo. Sentia meu sangue
pulsando, pulando. Pensei em pedir ajuda a alguém, mas o beco era vazio, nada,
ninguém. Queria gritar.
Senti uma mão me
segurando fortemente pelo braço. Não consegui me soltar por mais que tentasse,
e fui completamente dominada. Ele me puxou para o canto mais escuro.
Foi tudo muito confuso
e perturbador, não fui capaz de enxergar seu rosto. Não passava de uma imagem
disforme.
Empurrou-me contra a
parede, sussurrou algo inteligível, abafava minha boca com uma mão e
segurando-me firme, cortou meu pulso. Eu estava exausta pela adrenalina e pelo
medo. Sentia tudo girar a minha volta e o tempo parar. Senti o sangue escorrer,
quente e ralo.
Ainda sinto dificuldade
em descrever tudo o que houve. É como se todas as cenas não tivessem mais
sequencia.
Ele se ajoelhou. E
embora a escuridão e minha exaustão não me permitissem reconhecer seu rosto,
percebi seu olhar. Olhava-me fixamente. Ele se ajoelhou num ato de devoção, e
seu olhar continha alívio e um mister de desorientação. E nem sei a cor de seus
olhos.
Então senti sua boca em
meu pulso, em meu sangue. Eu já estava inteiramente perplexa. Ele sugou, sorveu
meu sangue, numa ferocidade, numa ternura. Atônita, quase desmaiei.
A partir daí não sou
capaz de descrever os fatos seguintes por simplesmente não ter clareza deles.
Mas ao que tudo indica, ele me deixou naquele beco e fui encontrada por pessoas
que me acudiram.
____________________________________________________
Rio de Janeiro, 21 de
junho de 1896. 21:32- A pedido da polícia e sob sua observação, pus-me no mesmo
local em que sofri o ataque ontem. Uma de tentativa de atrair o agressor.
Sinto que seria
impossível reconhecê-lo, parece-me agora que todos os estranhos tem a mesma
altura e tipo físico que o dele. Creio só poder reconhecer seu olhar e o toque
de seus lábios.
A busca policial hoje
foi em vão.
__________________________________________________
Rio de Janeiro, 25 de
junho de 1896. 19:57 – Sinto medo constante desde aquele dia. Sinto horror pela
sua covardia. Monstro!
Mas temos continuado
com as ações policiais.
___________________________________________________
Rio de Janeiro, 24 de
junho de 1896. 22:01 - Chego em casa. De
volta para ninguém. Não deveria nem ter saído. Apoio as chaves. Ritual de
chegada.
Finalmente chego em
casa, após cruzar as multidões pelas ruas, gostaria de ser invisível. Não
existo para elas, ninguém me percebe. Nem mesmo ela.
Hoje a vi. Estava na
mesma rua. Mas não estava sozinha. Percebi a armadilha policial.
Devo continuar minha
rotina.
Repasso todas as cenas
em minha cabeça, até sou capaz de sentir o seu gosto na boca. Aquele gosto
vermelho. Ansiedade.
Preciso evitá-la. Mas
não quero.
___________________________________________________
Rio de Janeiro, 26 de
junho de 1896. 17:12 - Hoje não terá
ação policial. A partir de hoje as investigações serão internas e ocultas. Não
há pistas. Só uma navalha que foi encontrada no local.
Meu corte cicatriza,
minha alma não. Mas já não tenho mais certeza se o culpo mais do que a mim
mesma, a minha incompetência, minha fragilidade. Exijo punição para ele porque
não posso punir-me. Quero ele sangrando. Quero ele sofrendo. Quero ele...
_____________________________________________________
Rio de Janeiro, 26 de
junho de 1896. 21:26 – Chego em casa. Apoio as chaves. Ritual. Ninguém me
espera.
O dia foi longo.
Sinto-me ansioso.
Passei pelo mesmo
local. Ela não estava lá. Queria vê-la. Graciosa, bonita, branca, macia.
Repasso todas as cenas em minha cabeça. Eu a imagino novamente. Imagino-me
ajoelhado, vertendo lágrimas, agradecendo seu sangue.
Ela não estava lá e nem
seus policiais. Preciso evitá-la, mas não consigo.
______________________________________________________
Rio de Janeiro, 27 de
junho de 1896. 18:34 - Hoje irei ao
local. Irei sozinha, não me importa. Preciso olhar nos olhos dele, só assim,
verei nele, a covardia que sinto em mim. Preciso reconhecê-lo. Não penso em
outra coisa. Que seja feita a Justiça!
_____________________________________________________
Rio de Janeiro, 27 de junho
de 1896. 22:13 – Chego em casa. Apoio as chaves. Ritual de chegada. Não há
ninguém.
Passei pelo mesmo
local. Ela estava lá. Ela estava sozinha, perdida, pálida. Procurava por algo
que desconhece. Nitidamente assustada. Frágil. Irresistivelmente frágil.
Passei por ela. Ela não
me reconheceu. Às vezes sou invisível. Mas ela me esperava.
Esperei. Esperei a hora
certa. Encurralei. Ataquei.
Senti-a novamente.
Empurrei-a contra a parede do beco escuro. Abafei sua boca. Ela estava furiosa.
Ela estava eufórica. Ela desmanchava-se. Arranquei o curativo de seu pulso.
Cortei-a novamente. Eu a cortei. Rasguei sua carne. Ela ameaçava, grunhia. Ela
sangrava e eu já não ouvia. Senti seu sangue, rápido e amargo. Olhávamos
fixamente. Beberia eternamente. Ela estava assustada. Eu em êxtase.
Sussurrei em seu
ouvido: Você gostou!
Larguei-a e fui embora.
Não olhei para trás.
Chego em casa e estou
com minha lâmpada cambaleante.
__________________________________________________
Rio de Janeiro, 28 de
junho de 1896. 13:23 – Cinismo, covardia e loucura. Esse é ele. A cada dia mais
sinto repúdia por ele. Mas também me repudio.
Todo meu corpo ainda
dói. Sinto sua violência. Sinto todo ele em mim.
__________________________________________________
Rio de Janeiro, 28 de
junho de 1896. 22:56 – Chego em casa. Ritual de chegada. Apoio as chaves.
Ninguém em casa.
Ela estava lá
novamente. Perdi minha invisibilidade. Segurei-a, arrasteia-a, domineia-a,
cortei-a, bebi-a.
Ela não resistia, não lutava. Ela estava lá.
Eu estava no céu.
Sussurrei: até amanhã!
__________________________________________________
Rio de Janeiro, 28 de
junho de 1896. 23:04 – Cinismo, covardia e loucura. Essa sou eu. Sinto-me parte
dele.
Até amanhã. Até todo
dia.
(algum mês de 2013)