quarta-feira, 4 de março de 2015

O que não tive

Ele era alegre. Tinha os olhos da avó. Mais expressivos. Carregava a ingenuidade mentirosa de quem acredita na paz mundial. De quem acredita nos outros mas não em si mesmo.  Uma dessas pessoas que faz caridade quando sorri para outros, porque tem um daqueles sorrisos que vem da alma para a boca. Gostaria de dizer que tinha talentos excepcionais, mas não cabe aqui mentir ao meu caro leitor, pois ele não tinha. Não era musicista, nem artista, ou esportista. Nem deu para ser poeta.  Contudo, meu caro leitor, há talentos mais excepcionais, há pessoas que entendem o coração dos outros, há aqueles que retornam ligações de amigos, e os que se doam para a vida. E há os que dão vida a outros. E os que tem filhos. Nisto há um dom. E dom não é para todos. Nem tudo, é para todos.  E este, meus caros leitores, é o filho que não tive, por isso vos escrevo. Não deixei herdeiros da miséria da existência humana. 

Clarice e as outras

Clarice não conseguia dormir. E também tinha medo de acordar. Os barulhos debaixo da cama, só podiam ser uma coisa, havia um monstro lá.  Também havia um monstro no espelho e outro na porta da rua, assim como em outros lugares. Nunca viu, mas não restavam dúvidas.
Houve um dia que Clarice viu. E debaixo da cama, o monstro que a assustava, era ela mesma. E uma a uma, Clarice foi vendo todas as Clarices de que tanto tinha medo.

Eram todas partes da travessura de uma mesma Clarice. E assim conviviam , as Clarices de vontade inconsciente e a Clarice aparente. Qual delas ali estava, ninguém sabia , mas foram todas as Clarices que tornaram-se uma.