segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Avesso


Clara tinha trinta anos. Trabalhava como acompanhante de uma idosa enferma.

Possuía uma casa da qual não tinha o direito de se lembrar que a tinha, caso  quisesse ganhar o pão de cada dia. Passava todas as noites e os dias na casa da senhora enferma. Em seus domingos de folga abria a porta da sua sala e aspirava aquele cheiro de mofo que a casa fechada exalava.

E assim vivia Clara. Mas tinha que se sentir feliz, tinha que agradecer pela vida que tinha. Afinal, seu emprego pagava suas contas, e a velha não era das piores, tinha uma casa simples, mas própria, o que mais poderia desejar? Esperamos que nada. E de fato Clara nada mais desejava. Ela carregava consigo uma conformação nata dos que não podem muito.

Aliás, Clara podia comprar o celular da moda. Clara podia comprar aquele par de sandálias da promoção. Clara também podia  ouvir sua banda favorita enquanto se deliciava com a receita nova, mandando a sua dieta ás favas, coisa que Clara também podia. Ah, e Clara também podia ter alguns amigos e amigas, os quais ela podia de vez em quando revê-los.

E assim vivia Clara. Mas estava tudo errado. “Como assim tudo errado?”.”Assim tudo errado”- Clara monologando com sua consciência.

Ela não sabia exatamente o porquê, mas sempre ouvia que sua vida estava errada, que o mundo estava errado... Cada um tinha sempre uma boa razão e uma ótima solução para a sua vida. A casa deveria ser amarela para alegrá-la, suas roupas deveriam ser mais ousadas, ou menos ousadas. Porque não fazia isso? Ou porque não tinha feito aquilo?

E Clara, que levava a vida sem nada mais desejar, entendeu de que de fato estava tudo errado. E foi durante um almoço insosso que uma lâmpada fluorescente lhe acendeu a mente, o espírito e claro, sua consciência, que era seu animalzinho de estimação. E como estava tudo errado, Clara pôs-se a consertar as coisas imediatamente. Trocou o garfo e faca pela colher e faca.

E quando se levantou, andou de costas. Guardou a louça no guarda-roupa. Calçou o par esquerdo do chinelo no pé direito. O relógio e a televisão foram postos de cabeça para baixo. Leu a revista de trás para frente. Vestiu-se do avesso.

“Pronto, agora deve estar tudo certo” – Clara aliviando a consciência.


3 comentários:

  1. Certo e errado podem ser tão flexíveis... Pode estar tudo errado pro mundo, mas se estiver certo pra pessoa... Vice-versa. Gera muitas reflexões sobre a rotina, sobre os rumos da vida (os rumos que a vida toma e os rumos que a gente dá à vida). Que legal que voltou!

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  2. Adorei! Nos instiga a pensar sobre várias coisas .. Como a vida pode ser cômoda e cair na mesmície, ou como os outros sempre tendem a dar palpites no que está certo para nós. As vezes as coisas estão devidamente no seu lugar, e teimamos em dizer que tem algo errado, tentamos mudar e aí sim tudo sai do eixo ..
    Muito bem escrito, criativo e bem Carol =D
    Parabéns minha linda, que você continue nos presenteando com seus ótimos textos e que estes cresçam e ocupem o espaço que de fato merecem =D
    Bjo!

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  3. Como te disse... Gosto muito de ler. E seus blogs sao gostosos mesmo de se ler. Parabens, Carol! continue sempre assim... :) Bjs Whitecast

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