quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

A Hora do Chá

A hora do chá

Era uma tarde cinza, perfeita para um chá. Seria um bom momento para se sentarem frente a frente e murmurarem as mazelas da classe média e dos preços cada vez mais altos para se manter nela. Uma decoração doméstica simples mas que acompanhasse a moda, roupas novas a cada estação, o combustível para o carro de fabricação do ano anterior. Sem falar na política que nunca melhorava. E nos projetos sociais da igreja do bairro. O quanto era difícil sustentar a imagem dessa classe. Um fardo para poucos.

Então o casal harmoniosamente sorvia seus chás em xícaras luxuosas, dignas de uma herança familiar centenária. A mobília era modesta, mas o casal tinha gestos de realeza. Um sangue azul forjado, inquestionável para qualquer pessoa, menos para eles mesmos.
A porta é batida, quebrando a monotonia do diálogo pausado e sem fim. Quem bateria á porta deles? Quem poderia ser? Ninguém ia até lá a meses.

“Seria a família deles? Seria a policia? A família com a policia? E agora, o que faremos?”

Diriam que conheceram o casal Geisel em uma viagem. Diriam que uma crise conjugal os motivou a querer trocar de lugar, e cederam a eles toda a casa. Não. Diriam que nunca ouviram falar dessas pessoas. Não. Diriam que o casal perdeu a casa e todos os seus pertences numa aposta durante uma noitada de viagem. Não. Ninguém acreditaria neles numa noitada, eram tão caretas. E a porta ainda era batida, incessantemente, violentamente. Diriam que foram convidados a morar com o casal, mas que estes, se retiraram em uma viagem. E aquela porta batendo. Já não eram capazes de pensar em mais nada. Nenhum álibi. Nenhuma história perfeita. Diriam a verdade.

Como ninguém respondia a porta, mas insistia em batê-la, sabiam que estavam ali e não havia dúvidas, era a policia. E pela força com que batiam, já sabiam, já sabiam de tudo. E eles finalmente poderiam dizer a verdade. Réus confessos tinham melhores chances. Confessariam. Não por nenhuma consciência que lhes pesava. Confessariam porque não suportavam mais aquela porta batendo. Era de ensurdecer. Não conseguiam pensar. Logo, mal conseguiriam respirar. Mas não seriam capazes de contar tudo olhando nos olhos.

Se aproximaram da porta e começaram a falar. Conheceram o casal Geisel numa excursão. Passaram longas horas juntos. Uma grande empatia. Eles pareciam perfeitos, o romance, a vida material e social. Passaram a visitá-los com freqüência. E embora agradável, era igualmente incômodo ver que eles possuíam tudo o que  não tinham. Ainda assim, ficaram tão íntimos que já conheciam toda a rotina, todos os passos, e todos os espaços do casal. E num dia, cuidadosamente combinado, embriagaram o casal. Amarraram-nos. Surraram-nos. E tomaram seus lugares, na casa, na sociedade, na documentação, na classe média. O casal? Vivam no porão desde então. Até que não era um cárcere tão ruim.

Quando então tiveram a coragem de abrir a porta, com as mãos para o alto em sinal de paz. A policia? Era o carteiro, com uma encomenda a ser assinada.

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